segunda-feira, 19 de abril de 2010

Desconfiança

- Por favor, eu vim do interior porque tinham me prometido um emprego e agora estou sem ter como voltar, o senhor não poderia me ajudar a comprar a passagem de ônibus? Na verdade mesmo, tenho que comprar remédios dessa receita... e fui assaltado levaram tudo o que ganhei no trabalho do dia e meu pai vai me bater se chegar assim...

Quem nunca ouviu uma dessas histórias? Quem nunca acreditou? Quem hoje não duvida?

Semana passada, após um almoço comido pela metade, pedi para embalar o restante e ofereci a um rapaz na rua. O olhar do homem ao receber a comida, movido pela necessidade tanto quanto pela humilhação, me tocou profundamente. E tive uma nítida sensação de não saber o que fazer. Alguém já se sentiu assim?

Certa vez, com cerca de 20 anos de idade, eu e um primo estávamos passando por uma rua e vimos um pobre garoto em um canto aos prantos. Detalhe: aos prantos mesmo. Paramos o carro na hora e ouvimos a história que tinha sido roubado e que se voltasse sem nada pra casa o seu pai bateria nele e etc. Colocamos o menino no carro, fizemos um lanche com ele, conversamos bastante sobre a necessidade da escola, de estudar, de ir a igreja. Pegamos uma mala de roupas, um bom dinheiro e o deixamos na porta da favela onde morava. É assim, penso eu, que agem as pessoas não acostumadas com o sofrimento - se movimentam.

Pois bem, cerca de três meses depois ouço a mesma história de um amigo e depois de outro. Mais um pouco de conversa e descubro que na verdade era um truque, uma forma esperta de ganhar dinheiro rápido. Puxa, aquilo me doeu. Definitivamente não doeu porque fui enganado, de forma alguma. Acredito que ser enganado faz parte da vida, como se enganar sozinho. Me doeu a imagem que esse jovem alimentou na cabeça das pessoas sobre mendigos, pobres e necessitados desesperados. Em algum lugar, pensei, tenho certeza, alguém necessitado de verdade deve ter tido ajuda negada através da idéia: "isso é fingimento", e o mais triste é que o pensamento procede.

Uma amiga no Rio pegou um táxi e ouviu a história mais triste de sua vida. O taxista continha o choro enquanto atendia o telefone das filhas pedindo calma a elas. A história era que a mulher estava em estado terminal e que estava trabalhando até juntar R$120 para pagar um remédio que amenizava a dor enquanto agonizava para a morte. Minha amiga pagou o necessário e chorou por uma semana inteira. A história era falsa.

Minha mãe, outro dia, voltando para Maceió de Recife atendeu o pedido de um rapaz desesperado sem ter como voltar e blá, blá, blá. Pois bem, ela comprou a passagem com a poltrona ao seu lado, não entregou o ticket ao pedinte e disse: na hora do embarque esteja aqui e você vai comigo. Ele foi. Dessa vez parecia verdade.

Mas pensem no turbilhão de defesas que criamos. Em quantas confirmações precisamos até que possamos sentir confiança em ajudar alguém desesperado. Em quantas vezes deixamos de ajudar alguém por medo. O pior: medo justificável.

Hoje, prefiro ajudar instituições, grupos de apoio, centros religiosos de amparo e coisas do tipo. E parei, definitivamente, de dar esmolas.

Mas isso é muito triste mesmo.

Vi uma entrevista com Roberto Carlos, ex-morador de rua (até fizeram um filme sobre ele). Ele repetia para não dar esmolas, principalmente a crianças. Mas e as carinhas de desespero que elas fazem? É um aprendizado, ele dizia, um treinamento.

Eu entendo, mas me dói excessivamente não poder relaxar e acreditar nas coisas e pessoas, não é de meu feitio. Não acreditamos em políticos, em vendedores, em pastores, em padres, em pessoas necessitadas...caramba!

Desconfiaça: desconfiar + -ança; ver fi(a)-; f.hist. sXV desconfiança, sXV desconfiãça, substantivo femino - falta de esperança.

4 comentários:

  1. Sinto essa mesma agonia, mas ainda prefiro pensar que as pessoas possam estar falando a verdade. Com isso podemos ajudar alguém de verdade ou alguém a refletir sobre a verdade.

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  2. Salve, meu querido!
    O homem passou pela época do 'ser' (iluminismo), do 'ter' (capitalismo) e agora passa pela fase do 'aparecer' (fruto da atual sociedade da informação). O princípio que move a necessidade de exibir riqueza vejo como idêntico ao que provoca exibir a miséria. Não digo a miséria em si, que é a própria ausência de condições mínimas de dignidade e bem-vivência. Mas quando uma pedinte carrega um bebê no colo, estimula em quem aquilo vê uma sensação inversamente proporcional ao ver uma bolsa Louis Vuitton no colo de uma mulher de posses. Ou seja, ambos são alegorias.
    O fato da esmola é parecido com o sistema de telemarketing: você nunca trata com o gerente. Mas ele existe. E encontrá-lo é abrir uma fresta ao sistema. Realmente, ao meu ver, é preferível o gesto de "conhecer a cozinha", ou seja, de abordar o miserável pela surpresa, levá-lo para uma experiência fora da realidade dele (fazer um lanche, ver o rio, jogar bola). A verdade está lá, do mesmo jeito. Se ele mente, é a verdade dele, é o sistema dele. Dar um trocado é manter a linha de produção em andamento. Por outro lado, é insustentável abordar cada pedinte desse modo mais interativo: o fato de pedir já é uma falha na sociedade. Mas isso já é outra conversa...

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  3. Puxa Fernando, belo pensamento. me deixou com a cabeça a mil.

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  4. Olá. Eu aqui em SP passei por isso muitas vezes: não ajudar por não acreditar e ajudar e depois perceber ter sido enganada. Não sei... e se o garota que vc colocou no carro te assaltasse? a gente tb. acaba criando couraças.. a tal da falta de esperança, é isso aí! Abraço. Guiomar

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